A Casa Dos Espelhos

    Desde o início dos tempos, nenhum homem jamais saiu da casa dos espelhos triste com sua personalidade. Todos viam como eram felizes. Todos saíam satisfeitos consigo próprios, mesmo que não merecessem. Mas isso foi apenas ontem.
    Como estava escrito por sobre a porta, um dia, um homem viria e não mudaria sua opinião pelo que veria, então, nesse dia, a casa ruíria e mataria o homem. Este homem voltaria a viver se alguém sentisse sua falta. Então todos os homens que achavam que fariam falta para alguém foram apenas para destruir a casa, e saiam felizes.
    Um homem que amava, e não era amado, sentia falta, mas não era percebido, resolveu ir até lá, pois não gostava de sua infelicidade. Ele não se importava com o que aconteceria, pois sabia que não era especial, sabia que ele não era aquele homem que acabaria com a casa. Mas sabia também, que se ele não saísse feliz iria morrer, pois ninguém sentiria sua falta.
   
    Lógico que houveram preparativos, feitos por aqueles que diziam que ele faria falta. Haviam aqueles que olhavam para ele e pensavam: "Que cara estranho, ele precisa de ajuda, eu vou ajudar ele, senão não vou pro céu!". Haviam aqueles que diziam a ele: "Quando você sair feliz, você vai ver como é bom!". Ele sabia que a ignorância daqueles que o cercavam apenas o deixava com inveja, mas esses sentimentos, ele não controlava, assim como o amor que sentia por uma garota. Esta amava seu dito "melhor amigo", que, como qualquer homem normal, se aproveitava daquelas que o amavam. Já o homem não-amado pensava apenas em que ela não deveria sofrer como ele sofria, mas ela era feliz sendo usada. Provavelmente ele também seria, mas ele era homem. Estava num dos extremos de um triângulo amoroso. No extremo "Ama e não é amado". Ela estava no centro do "Ama e é amada". E o "amigo" estava no outro extremo, "Não ama e é amado".
    O homem não sabia como não ser controlado, não controlava nem a si mesmo, nem a seus sentimentos. Não controlava a inveja que sentia da ignorância dos outros, não controlava o amor por aquela garota, nem a vontade de ser usado por ela.
    Ele tentava esquecê-la, e como tentava. E sofria por não conseguir. Pensava "E apenas um pouco de minha vida que se passou...". Ele sabia que tinha sido a melhor parte, a infância. A infância dele não tinha sido das melhores, não tinha brinquedos caros nem muitos amiguinhos, mas tinha sido divertida. E ele sabia também que as frustrações estavam apenas começando. No fundo, ele não queria sair vivo daquela casa. Ele não sabia, mas não queria ser ignorante. Ele não sabia, mas estava feliz com seu modo de vida. Se sentia bem se deprimindo com tudo. Se sentia bem, pensando em se matar. Ele era feliz, mas havia uma enorme máscara de tristeza em sua face. E ele não sabia tirá-la. Ele não conseguia se convencer do que sentia, não tinha certeza de nada. Só tinha certeza que era triste. Ironicamente, na única coisa que ele tinha certeza, ele estava errado.
    E era assim que ele pensava. Nada que ninguém dissesse mudaria isso. A única coisa que mudaria sua visão, seria aquela garota, ou pelo menos assim ele achava. Ele até disse a ela (Numa ocasião que ela não se lembra, mas que ele guarda no coração), que sua vida seria divida em "Antes de tê-la conhecido" e "Depois de tenha conhecido". Ele não imaginava, na época, que a mudança seria para pior.
    A culpa de ela não amá-lo, era dele. Ele não passava confiança a ninguém. Ela sabia que pensavam iguais, mas ela não o amava como amava ao "amigo". "Você não se ama, como espera que te amem?" disseram-lhe uma vez. E assim era sua vida. Só se sentia menos mal quando lembrava de uma frase que havia lido na parede de um banheiro. Aquela frase, o fez tentar suicídio tantas vezes... mas sua consciência o parava antes que acabasse com tudo. Aquela frase... "Amanhã será pior". Quando ele a leu, durante uma dor de barriga, nem pensou, mas depois começou a perceber a dura realidade da frase. E sempre repetia a frase... "Calma, isso não é nada... amanhã será pior...". Ele não gostava de pensar assim, mas era mais um sentimento que não controlava. Ele queria ir para aquela casa, não para sair feliz, mas para morrer. Ele achava que sua tristeza era tão grande, que nada que visse naquela casa iria acabar com ela. Talvez diminuiria, mas não acabaria. Ele escrevia em um caderno. Ele escrevia e sonhava. Seus desejos povoavam aquele caderno. Ele mostrou o caderno à ela uma vez, e se arrependeu, pois ela usou o que leu para conquistar outros. Sua confiança nos seres estava esgotada.

    Naquela noite de festa para os outros, ele só esperava todos irem embora, para poder chorar. Ele achava que aquela festa era uma despedida, e via sua amada se divertindo com seu "amigo", e as lágrimas forçavam passagem, passando por sua vontade. E os vinham todos para alegrá-lo, inclusive os dois. Quando ele parava de chorar, todos voltavam às suas animadas conversas, e o deixavam sozinho de novo. Todos iam se divertindo, e só ele via toda falsidade, e as lágrimas forçavam passagem, e a cena se repetia. Até que ele decidiu que a festa havia acabado. Mas não queria insistências para que continuasse, então apenas se retirou, silenciosamente. A festa se manteve, enquanto ele ia até o banheiro. Lá, se olhou no espelho, chorou. Escorregou pela pia e se arrastou até a privada, onde levantou a tampa e se olhou no reflexo da água. Pensou "Ali é o meu lugar", enfiou a cabeça na água, até que sua consciência o puxou para trás. Ele tossia. Pela água que tinha engolido e pelo cheiro de cigarro, alcóol e hipocrisia que infestava o ar. Então estirou-se no chão sujo. Pensou nos dias bons que não havia passado com sua amada e dormiu. Abriu os olhos, e não ouviu nada, nem o silêncio. Estava tudo branco e quieto. Então ele acordou. Se levantou, entrou no chuveiro. Percebeu que estava de roupa ainda, mas não quis tirar. Mal tinha forças para ficar de pé. Então, quando se sentiu acordado o suficiente para poder dizer bom dia ao porteiro, saiu andando pela casa, com os sapatos cheios d'água e a mente vazia. Lembrou que hoje era o dia da casa, o dia em que encontraria a morte ou a felicidade. Ele esperava a morte. E assim ele foi, andando molhado, por todo o enorme percurso até a casa. No meio do caminho, não havia mais água em seus sapatos, mas sua mente ainda estava vazia. Até que algo chegou em sua mente. Algo triste, como sempre: "Se você não fez falta à ninguém no banheiro, por que faria se morresse?". Sorriu, e falou em voz alta: "Vou morrer. Até que enfim. Se eu não me mato, que essa casa me mate."

    Quando chegou, todos que estavam na festa, formavam grupos, uns xingando o homem pelo atraso, outros com dó dele, outros nem sabiam o que falar, mas falavam assim mesmo. Só estavam ali para que "salvassem uma alma". Ele percebia a falsidade de todos, e ficava bravo com todos, menos com ela. Quando o viram, todos foram até ele, não para saber o que queriam saber, mas para demonstrar toda aquela falsa amizade. Como eram atores, ele atuava também. Quando seu "amigo" foi lhe dizer: "Eu respeito ela, pelo seu amor por ela.", ele apenas lembrava "Eu vi o que ele pensa que eu não vi.". E chorou quando deu as costas a todos, virando em direção ao centésimo primeirom volume do "Livro dos que tentaram destruir a casa". Ele era o número setecentos e noventa e dois. Lembrou-se que cada livro tinha mil nomes. Ele era o 101792º. Se tantas pessoas não conseguiram, por que eu conseguiria? Perdeu a pouca confiança que tinha. E entrou.

    Não sabia o que tinha lá dentro. Os que já haviam passado por lá, saíam tão felizes que não se lembravam de nada anterior a saída da casa. Se encontrava num corredor e ouvia seus "amigos" esbravejando às suas costas. A medida que entrava, o começo ficava mais escuro e esquecido, e o final ficava mais claro e feliz. Então viu que no dia anterior estava errado. Hoje não estava sendo pior que ontem. Ele estava viajando em seus pensamentos, sem se preocupar com o que acontecia, quando apareceu em sua frente ela. Ele a viu. Ela o viu. Ele se confundiu, ela se sentou e abriu levemente a boca. Ele olhou no fundo dos olhos dela e não viu o que sempre via. Ele viu um brilho estranho e belo. Sentiu toda a felicidade que estava sob camadas de tristeza. Então ele achou que não era verdade. Então ela disse, quebrando aquele delicioso silêncio:
    -Isso não é real... você realmente está aí?
    Ele não entendeu. Não sabia se tinha dito ou ouvido aquilo, então tentou falar, e falou.
    -Eu estou aqui... você... é...
    Ele parou. O brilho nos olhos dela continuava. Pensou ser o brilho do amor, mas não poderia ser real. Ela estava lá fora. Ao invés de aproveitar o momento, ele pensava no que dizer, até que disse pausadamente:
    -Não. Você sou eu. Eu não amo a mim.
    Uma porta cheia de pó, quase imperceptível, se abriu. Ele não entendeu mais nada, e entrou. Havia um livro fechado. Na capa mal se lia, mas ele limpou o pó, e viu "Livro dos que destruíram o amor". Abriu na primeira página, estava escrito "Volume I". Assinou. Era o primeiro. Assim que assinou, a sala anterior desabou, a porta se fechou e se abriu, e a sala estava reconstruída, e ela parada em pé, do mesmo modo que ele a encontrara. A sua frente havia um corredor do mesmo tipo do corredor do início, e ele seguiu por ele, enquanto chorava e pensava "Se fosse real... se o amor fosse real..."

    Enquanto seguia pelo corredor, percebia que ninguém passava ali há anos, isso se alguém tivesse passado. Ia desviando de teias de aranha, buracos no chão e bichos peçonhentos. Agora só pensava em como sair da casa. Chegou na sala. Enorme era a sala. Enorme era o precipício que havia ali. Enorme era a vontade de continuar. Havia uma abertura, como uma porta, do outro lado do precipício. Ouviu vozes ecoando na sala. "Porta é o fim. Lá você encontrará o que quer". Ele olhou em volta e viu cordas para que atravessasse. Ele começou a atravessar. No meio do caminho, ele parou. Se lembrou do por que tinha ido a casa. Ele não queria sair da casa vivo e feliz, ele queria morrer. Ele pensou então que se destruísse a casa e morresse, alguém ia sentir sua falta. Iriam querer conhecer o homem que destruiu a casa. Então ele respirou fundo e se soltou das cordas. Voou... voou.. e se sentiu bem voando. Ele não precisava chegar a porta para ter o que queria, ele queria só morrer. O precipício se encarregaria disso. E ele voou... e caiu, em pé, sem dor. Uma mulher o esperava.
    -Havia me esquecido de que alguém ia cair aqui um dia...
Ele olhou para aquela mulher, e pensava se ela também tinha se jogado da corda.
    -Não. Eu não me joguei da corda. Você pode sair por aquela porta. Você não está preso aqui como eu. Só sairei se alguém me levar. Eu sou cega e minhas pernas não estão boas.
    Ele parou. Olhou para a porta, e passou por ela... Viu o livro, limpou-o e leu "Livro dos que destruíram a esperança". Era o Volume I. Era o primeiro e assinou. Assinou e a sala desabou. A porta se fechou e se abriu. A sala estava reconstruída e a mulher estava ali, gritando sem sons e sem movimentos. Ele chorou, e pensou "Se ainda houvesse esperança..."

    O corredor era o mesmo, mas ele se sentia diferente. Olhou para trás, e a mulher estava lá ainda. Voltou até ela, permaneceu ali por algum tempo. Pensou "Se já passei por essa sala, que mal tem em levar a velha?" Pegou ela no colo. Deu dois passos, a largou no chão e passou correndo pela porta. Assim que passou pela porta, havia um outro livro. Ele leu, sem entender "Livro dos que destruíram a lembrança boa", Volume I. Ele assinou, e a sala anterior desabou. A porta se fechou e se abriu, e a mulher estava lá de novo. Dessa vez, sem olhar para trás, foi andando pelo corredor, pensando "Eu não tenho nada de bom pra lembrar"

    Chegou ao fim do corredor e, admirado, viu todos os conhecidos. Estava fora da casa, estava vivo, mas não estava feliz. Todos perguntavam como havia sido. Surgiram seu "amigo" e ela. Assim que os viu, saiu correndo de volta para dentro do corredor. O mundo desabou e uma porta que ele nem tinha visto, se fechou. Achou o livro e leu "Livro dos que destruíram a amizade". Volume I. Ele assinou, a porta se abriu, e todos estavam lá de novo. Ele se confundiu com toda aquela gente, e pensou "Amizade é ilusão..." enquanto seus olhos inundavam seu rosto.

    Mais uma sala. Ele olhou por toda parte, e não encontrou nenhuma porta, nem a que tinha entrado. Então ele se sentou bem no meio e começou a pensar no que tinha feito de errado. Estaria condenado a viver ali naquela sala até morrer? Até que um buraco se abriu no teto. Seu caderno caiu de lá. Com letras dele mesmo, podia se ler: "Siga em frente, amanhã será pior"
Ele se lembrava de ter escrito isso. Uma porta se abriu. Ele olhou a porta. Rasgou a página do caderno. A porta se fechou, ele se levantou rapidamente e correu em direção de onde havia a porta. Não havia mais nada. Nem porta, nem rachadura. Nada. Voltou ao centro, e escreveu no caderno: "Posso ao menos morrer em paz? Não confio mais em mim". Outra porta se abriu. Ele olhou, e entrou, deixando o caderno para trás, enquanto dizia "Isso não me serve mais". Assim que passou pela porta, viu o livro. "Livro dos que destruíram a confiança" era o que dizia na capa. Volume I. Assinou, a sala desabou, a porta se fechou, e se abriu. E a sala estava como havia encontrado na entrada. Seguiu o corredor, enquanto pensava "Não confio nos meus pensamentos"

    Conforme ia avançando pelo corredor, ele ia se estreitando, mas ele continuava. Suas pernas doíam, mas ele estava confuso, nem sentia mais as dores. Sentou e quando ia começar a chorar, uma porta se abriu. Ele gritou para a casa "Me mate logo de uma vez! Eu não quero ser feliz!". Entrou, e havia um livro. "Livro dos que se destruirão". Volume I. Não mais chorava. Percebia a terrível verdade daquele livro. Viu que realmente se destruiria. Então assinou. E as portas se fecharam, ele ficou num cubículo apertado. Ele estava sendo esmagado. E gritou "Me mate logo! Sem sofrimento!". Então as paredes se fecharam rapidamente, sem sofrimento, como ele desejava. E a casa desabou. Ele estava morto, para o alívio do mundo.

    Quando acordou em uma sala branca, diante somente de um espelho, pensou se estava morto. O reflexo dele no espelho se mexeu. Ele parou, e o reflexo falava com ele. Ele conversava consigo mesmo. E ele lhe disse:
    "Você tem alguém que sentirá sua falta.
    Esse alguém já sente sua falta, assim
    como você sente a falta desse alguém.
    Há alguém. Pra todos há alguém. Você
    pode nem conhecer esse alguém ainda.
    Esse alguém é como você. Se você encontrar
    esse alguém, ninguém vai tomar de você"

    E ele reviveu. Se manteve triste e sem amigos. Seus "amigos" continuaram atuando. E a porta pela qual ele saiu se fechou e se abriu. A casa estava reconstruída. Ele lhe disse, e ele nunca esqueceu:

    "Finja a felicidade para não ficar mais triste
    pois se você ficar triste, ninguém entenderá
    por que a casa ainda está de pé. E eu lhe digo,
    você não foi o primeiro a destruir a casa, você
    foi o segundo. A primeira é o alguém de quem
    lhe falei. Ela também
    destruiu o amor,
    destruiu a esperança,
    destruiu a lembrança boa,
    destruiu a amizade,
    destruiu a confiança e
    destruirá a si mesma.
    Se vocês se encontrarem, reconstruirão tudo isso
        e, juntos, destruirão o sofrimento."

Terminado às 1:47 am do dia 18/07/2003
Passado a limpo e mudado em algumas partes às 10:22 pm do dia 18/02/2004
Pequenas correções às 03:35 pm do dia 21/07/2011