domingo, 8 de julho de 2012

Ronronar

[Batidas na porta]

- ah meu deus... quem?
- Sou eu!
- ah.. ah.. já vou..

[Porta abre.]

- eu tô... uhn.. enjoada..
- Você tá...
- uhng.. doente..
- Linda.

[Ela não poderia estar linda. Ela estava descabelada, com o rosto pálido e suado. Olheiras enormes. Ela não poderia estar linda, mas estava.]

- eu nao devia ter comido... ungh... aquela merda.. de lagosta...
- ...

[Ela corre pro banheiro e vomita. Ele só ouve, e espera o silêncio para ir atrás dela.]

- Vem. Você precisa de um banho.
- nah, me deixa... arg... que gosto horrível...
- Vem.

[Ele a coloca sentada dentro do chuveiro, pega a mangueirinha e a abre. Liga o chuveiro, verifica se a água está muito quente (normalmente, ela sai mais quente na mangueira). Á agua cai do chuveiro e sai pela ponta da mangueira. A água que cai do chuveiro a molha na cabeça e a mangueira, ele deixa nas mãos dela.]

- Olha. Eu vou te deixar aí um pouco. Tira essa roupa e depois se enrola na toalha.
- não me deixa. vem...

[Ela o puxa para dentro do chuveiro. Ele está de calça, camiseta e jaqueta e tudo se molha.]

- Não, não. Se ajeite aí.
- vem... me abraça...

[Ele se senta do lado dela e ela deita no ombro dele. A água continua correndo. Ele fecha os olhos enquanto a abraça. Ela pega a mangueira e põe próximo da boca dele.]

- Acorda!
- Oi?
- Eu te amo.
- !
- ?
- Você nunca me disse isso. Tá bêbada?
- Não.

[Ele a beija, nem se lembra que ela acabou de vomitar.]

- Sabe do que mais?
- hmmm?

[Esse 'hmmm' parece o ronronar de um gato]

- EU te amo.
- Eu sei.
- Claro que você sabe. Olha onde eu estou. Como eu estou.
- Não...
- O que você comeu pra ficar assim?
- Lagosta.
- Então. Você deve amar lagosta. Olha só, você aceita o risco de passar mal e come a lagosta.
- Hm.
- Eu estou aqui. Eu assumi o risco. Eu te amo. Você só me aceita por que eu cuido de você pra caralho.
- Hmm...

[De novo o ronronar]

- EU te amo.
- ...

[Ela dormiu. A água ainda corre.]

sábado, 7 de julho de 2012

Pipas


    O menino começou a enrolar a linha em volta de uma lata de cerveja esvaziada por seu pai. A pipa estava perdida após um duelo épico contra uma outra pipa de algum lugar que ele não tinha idéia de onde era. Ele estava acostumado a perder as pipas, não sabia duelar muito bem, só continuava soltando pipa pois era fascinado pelas correntes de vento e pelo comportamento da pipa conforme os movimentos que ele fazia em terra, tão distante da pipa em si.
    Dezesseis anos depois, ele ainda mantinha o fascínio, mas agora, o controlado era ele. Um pipa, montada com cuidado e exatidão, para o deleite de outra pessoa. Ele entregava o controle e recebia o vento no rosto. A cada empinada da corda, ele respondia. E mergulhava. Seguia em direção da rabiola, ia contra o vento, sentindo a pressão contra sua face de papel de seda.
    Havia uma certa repercussão em tudo que ele fazia, no mundo todo. Como efeito borboleta. Ninguém notava, nem mesmo ele. Mas a cada rajada de vento que ele encarava com os olhos abertos, o vento chegava mais fraco nalgum outro lugar. Como todas as pessoas, todas as ações repercutem e mudam muito mais a história do mundo. É comum e incrível.

    - Oi, psiu.
    - Oi, coisa.
    - Como está?
    - Estou.
    - Senti sua falta.
    - O que mais há pra sentir?
    - De você? Nada, ainda.
    - Quando vem?
    - Logo. Ou nunca, quem sabe.

    Um ótimo pai, ele daria, diziam. Mas o pai dele mesmo havia sido ótimo em seu tempo, só depois que descambou. Sem o pai, ele não saberia soltar pipa. Talvez tivesse sido mais útil um pai que o ensinasse a fazer a barba ou o levasse num puteiro. Ele nunca vai saber. Algum vento que o pai dele resolveu encarar mudou a vida do filho, da filha, da esposa e, agora, daquela tal 'psiu'.


    - Sabe, você pode vir e nada acontecer.
    - Sei. Mas eu não vou conseguir viver com "e se eu tivesse ido".
    - É. Nem eu.
    - Por que você não vem então?
    - É isso que quer?
    - Talvez. Eu meio que prefiro ir. Não sei por quê. Parece algum tipo de obrigação moral inconsciente.
    - Machista.
    - Possivelmente.

    Outro dia, com a pipa mais linda do céu, ele foi duelar. E num céu de nuvens flocadas, com um ar quase parado, as rajadas de vento mal interferiam nos movimentos. Tudo estava em suas mãos. A pipa inimiga margulhou por sobre sua linha, e ele deu linha. As rabiolas se tocaram e quase se engrenharam, mas havia tanta calmaria que os pequenos pedaços de plástico tiveram tempo suficiente de desfazer os nós que o tempo tentava fazer. Como se as rabiolas estivem aproveitando o momento.


    - Parece uma urgência. Eu ter que te ver.
    - Eu não tenho muitas fotos pra você olhar.
    - Eu digo pessoalmente.
    - Ah.
    - Só ver basta.
    - Não quer me tocar? Me cheirar? Me comer?
    - Claro! Mas olhar. Olhar.

    A pipa inimiga foi um pouco para longe, e ele não sabia onde estava a linha dela. Tentou lembrar das aulas de física. Algo sobre tensão. Tentou imaginar como poderia fazer para dar um mergulho, enganchar a linha na dela, puxar para aumentar o atrito, cortar a linha dela e correr rapidamente atrás de seu prêmio. Se ele fosse bom o suficiente, conseguiria cortar a linha e enganchar a pipa inimiga de forma que, quando recolhesse a sua linha de volta para a latinha, a outra pipa viria junto.


    - Olha, eu consigo ver seus pés!

    Assim que ouviu isso, ela escondeu os pés embaixo do corpo, estava sentada na cama.

    - Seus pés são bonitos. Nunca tinha visto você, assim, de corpo inteiro.

    A pipa inimiga se aproximou e, ao mesmo tempo que ele tentou qualquer coisa para cortar a linha dela, ela tentou algo que parecia extremamente exato, mas que podia ser alguém  tentando qualquer coisa para cortar a linha dele. O sucesso foi dividido. As pipas fizeram zigue-zagues e as linhas se encontraram. O atrito fez a tensão aumentar. Ninguém tinha cerol ali, era só linha. Só linha. Como sabia que era tudo ou nada, tentou enrolar a cabeça da pipa dele na pipa inimiga. Como numa pescaria. Se antes, no breve contato entre rabiolas, os corações das pipas já haviam sentido a força do toque, agora, o papel de seda das duas estava na repulsão que só há quando duas coisas estão muito próximas. Ele sentiu a linha dele ficar frouxa. Sua pipa estava sem controle. Agora, tudo que ele podia fazer era assistir sua pipa ir para as mãos do inimigo.


    - Em um sonho, você sabe, a gente tende a melhorar tudo que acontece. Talvez você seja horrível e chata. Um cu. Mas eu também sou, então a gente tem que relevar, né?


    Uma rajada de vento surpresa bateu, e as duas pipas desafiavam a gravidade. Aquelas duas pipas não eram nem um pouco aerodinâmicas, juntas. Mas voavam. E voavam tanto que nem parecia que havia alguém controlando. E de fato, não havia. O momento em que a linha dele se rompeu, a linha da outra também se rompeu. As pipas estavam a deriva. A mercê do vento. Sem donos, sem controles. O vento as levava para onde quer que fosse e elas se recusavam a cair.

    - Sabe, a gente podia ter sido algo tão grande e tão bonito junto.
    - Quem disse que a gente já não é?

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Andando Na Pista De Corrida

Há um senso de obrigações, apesar da minha falta de compromissos no momento. É constante a sensação de que eu deveria estar fazendo algo, mas não há nada a fazer.
Que fazer então? Me repetir nas obrigações que já cumpri? Inventar compromissos ridiculamente inúteis só pelo bem de mim? Sair e andar onde as pessoas correm? Sentar e observar, como se eu buscasse inspiração no que outros decidiram fazer? Espero encontrar pessoas fazendo coisas interessantes ao invés de correr em círculos para extender a vida. Eles mal contam com o acaso...