sábado, 7 de julho de 2012

Pipas


    O menino começou a enrolar a linha em volta de uma lata de cerveja esvaziada por seu pai. A pipa estava perdida após um duelo épico contra uma outra pipa de algum lugar que ele não tinha idéia de onde era. Ele estava acostumado a perder as pipas, não sabia duelar muito bem, só continuava soltando pipa pois era fascinado pelas correntes de vento e pelo comportamento da pipa conforme os movimentos que ele fazia em terra, tão distante da pipa em si.
    Dezesseis anos depois, ele ainda mantinha o fascínio, mas agora, o controlado era ele. Um pipa, montada com cuidado e exatidão, para o deleite de outra pessoa. Ele entregava o controle e recebia o vento no rosto. A cada empinada da corda, ele respondia. E mergulhava. Seguia em direção da rabiola, ia contra o vento, sentindo a pressão contra sua face de papel de seda.
    Havia uma certa repercussão em tudo que ele fazia, no mundo todo. Como efeito borboleta. Ninguém notava, nem mesmo ele. Mas a cada rajada de vento que ele encarava com os olhos abertos, o vento chegava mais fraco nalgum outro lugar. Como todas as pessoas, todas as ações repercutem e mudam muito mais a história do mundo. É comum e incrível.

    - Oi, psiu.
    - Oi, coisa.
    - Como está?
    - Estou.
    - Senti sua falta.
    - O que mais há pra sentir?
    - De você? Nada, ainda.
    - Quando vem?
    - Logo. Ou nunca, quem sabe.

    Um ótimo pai, ele daria, diziam. Mas o pai dele mesmo havia sido ótimo em seu tempo, só depois que descambou. Sem o pai, ele não saberia soltar pipa. Talvez tivesse sido mais útil um pai que o ensinasse a fazer a barba ou o levasse num puteiro. Ele nunca vai saber. Algum vento que o pai dele resolveu encarar mudou a vida do filho, da filha, da esposa e, agora, daquela tal 'psiu'.


    - Sabe, você pode vir e nada acontecer.
    - Sei. Mas eu não vou conseguir viver com "e se eu tivesse ido".
    - É. Nem eu.
    - Por que você não vem então?
    - É isso que quer?
    - Talvez. Eu meio que prefiro ir. Não sei por quê. Parece algum tipo de obrigação moral inconsciente.
    - Machista.
    - Possivelmente.

    Outro dia, com a pipa mais linda do céu, ele foi duelar. E num céu de nuvens flocadas, com um ar quase parado, as rajadas de vento mal interferiam nos movimentos. Tudo estava em suas mãos. A pipa inimiga margulhou por sobre sua linha, e ele deu linha. As rabiolas se tocaram e quase se engrenharam, mas havia tanta calmaria que os pequenos pedaços de plástico tiveram tempo suficiente de desfazer os nós que o tempo tentava fazer. Como se as rabiolas estivem aproveitando o momento.


    - Parece uma urgência. Eu ter que te ver.
    - Eu não tenho muitas fotos pra você olhar.
    - Eu digo pessoalmente.
    - Ah.
    - Só ver basta.
    - Não quer me tocar? Me cheirar? Me comer?
    - Claro! Mas olhar. Olhar.

    A pipa inimiga foi um pouco para longe, e ele não sabia onde estava a linha dela. Tentou lembrar das aulas de física. Algo sobre tensão. Tentou imaginar como poderia fazer para dar um mergulho, enganchar a linha na dela, puxar para aumentar o atrito, cortar a linha dela e correr rapidamente atrás de seu prêmio. Se ele fosse bom o suficiente, conseguiria cortar a linha e enganchar a pipa inimiga de forma que, quando recolhesse a sua linha de volta para a latinha, a outra pipa viria junto.


    - Olha, eu consigo ver seus pés!

    Assim que ouviu isso, ela escondeu os pés embaixo do corpo, estava sentada na cama.

    - Seus pés são bonitos. Nunca tinha visto você, assim, de corpo inteiro.

    A pipa inimiga se aproximou e, ao mesmo tempo que ele tentou qualquer coisa para cortar a linha dela, ela tentou algo que parecia extremamente exato, mas que podia ser alguém  tentando qualquer coisa para cortar a linha dele. O sucesso foi dividido. As pipas fizeram zigue-zagues e as linhas se encontraram. O atrito fez a tensão aumentar. Ninguém tinha cerol ali, era só linha. Só linha. Como sabia que era tudo ou nada, tentou enrolar a cabeça da pipa dele na pipa inimiga. Como numa pescaria. Se antes, no breve contato entre rabiolas, os corações das pipas já haviam sentido a força do toque, agora, o papel de seda das duas estava na repulsão que só há quando duas coisas estão muito próximas. Ele sentiu a linha dele ficar frouxa. Sua pipa estava sem controle. Agora, tudo que ele podia fazer era assistir sua pipa ir para as mãos do inimigo.


    - Em um sonho, você sabe, a gente tende a melhorar tudo que acontece. Talvez você seja horrível e chata. Um cu. Mas eu também sou, então a gente tem que relevar, né?


    Uma rajada de vento surpresa bateu, e as duas pipas desafiavam a gravidade. Aquelas duas pipas não eram nem um pouco aerodinâmicas, juntas. Mas voavam. E voavam tanto que nem parecia que havia alguém controlando. E de fato, não havia. O momento em que a linha dele se rompeu, a linha da outra também se rompeu. As pipas estavam a deriva. A mercê do vento. Sem donos, sem controles. O vento as levava para onde quer que fosse e elas se recusavam a cair.

    - Sabe, a gente podia ter sido algo tão grande e tão bonito junto.
    - Quem disse que a gente já não é?